sexta-feira, outubro 28, 2005

Anacronismos

“Eu nunca tinha ouvido a palavra anacronismo. Nem sequer tenho a certeza de a ter entendido bem. Ana, isso eu sabia, era o nome da minha vizinha do quinto andar e também de uma colega de escola (...). Quando queria contar qualquer coisa que se tinha passado com uma delas usava expressões como «a-Ana-cá-de-cima» ou «a-Ana-lá-da-escola», mas a minha mãe corrigia-me sempre, dizia “as pessoas têm apelido”, ou Ferreira, como o Vergílio, ou Soares, como o Mário, ou Magalhães, como o Fernão de Magalhães.
O Vergílio Ferreira era um escritor que era amigo do meu pai e de quem a minha mãe dizia que era o Mestre (...).
O Mário era o Márocas, tinha sido eleito Presidente da República no ano anterior, a minha mãe é que gostava muito dele, o meu pai nem por isso, punha um ar um pouco aborrecido sempre que havia eleições, e dizia «lá tenho eu que votar no Márocas», como quem faz um grande sacrifício, e eu um dia até lhe perguntei se as pessoas eram obrigadas a votar no Márocas, ele riu-se, fez-me uma festa na cabeça, e disse-me, felizmente, hoje em dia, ninguém é obrigado a votar em ninguém.
O Fernão de Magalhães fora outra curiosidade para mim. Era advogado, como o meu pai, mas também era um navegador antigo (...).
Foi então que resolvi ir perguntar ao grilo que estava na cozinha o que queria dizer a minha primeira palavra difícil.
(...) O grilo reflectiu durante alguns momentos, e disse-me:
«É uma palavra estranha, difícil, sem dúvida. É como circunspecção, paradoxo, controvérsia. São palavras que os adultos usam com desenvoltura, que é outra palavra que é preciso sopesar, e este verbo também tem que se lhe diga. Quero eu dizer que são palavras que não podem ser utilizadas sem uma cuidadosa ponderação, e ponderação também não é nada fácil, principalmente quando se trata de a contextualizar, e este sim, é um autêntico palavrão» (...)”

MEGA FERREIRA, António - As Palavras Difíceis, Publ. D. Quixote

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